Em direito é frequente assistir-se a decisões jurídicas que avançam um pouco mais além da letra de lei, para produzirem deliberações nas quais a própria lei é frágil ou nebulosa.

Para ilustrar um caso que se encaixa neste enquadramento e frequente na vida das pessoas que partilham espaços urbanos com animais domésticos, o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) produziu recentemente um acórdão, no qual decidiu que existe fundamento jurídico para ordenar a retirada de animais da habitação que partilham com os seus proprietários.

Esta decisão ancorada no âmbito da tutela do direito ao sossego e à tranquilidade dos vizinhos, provou que o comportamento dos animais ultrapassou o tolerável convívio humano e contribuiu para uma degradação do estado de descanso, de espírito e um forte impulso para uma imersão depressiva do denunciante.

Vejamos o caso em concreto: um homem septuagenário, viúvo e proprietário de um imóvel onde residia sozinho recorreu ao tribunal para solicitar que o vizinho do andar superior fosse obrigado a retirar os dois cães que tinha no imóvel, alegando que lesavam a sua qualidade de vida, devido aos constantes ruídos e odores que produziados, impedindo-o de descansar durante a noite e sendo insuportável o cheiro a urina.

A ação foi julgada procedente com a condenação do vizinho a retirar os animais num prazo de cinco dias e a pagar 150 euros a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento dessa condenação. Inconformado, o vizinho recorreu para o TRC.

O TRC julgou parcialmente procedente o recurso, concedendo ao vizinho um prazo de três meses para proceder à retirada dos animais do imóvel em que residia.

O alojamento de cães em prédios urbanos não pode ameaçar o direito ao sossego, à tranquilidade, à saúde e ao sono dos vizinhos. Como a proteção destes direitos é constitucional e intangível, se estiver em causa a ofensa dos mesmos não interessa saber se se respeita o nível de ruído permitido, ou se o número de animais de companhia é o permitido por lei, porque nunca poderá fragilizar os direitos ao repouso e à saúde de terceiros.

Assim, o direito de propriedade sobre os animais e o direito de uso e fruição do imóvel onde se residem, não pode ameaçar o direito ao sossego e à tranquilidade dos vizinhos, a quem são concedidos meios para requerer que se apliquem as medidas que se apresentem adequadas às circunstâncias do caso para evitar a consumação ou, nos casos em que a ofensa já se mostre concretizada, atenuar os efeitos da mesma.

No caso, o cheiro da urina, fezes dos animais e os ruídos produzidos atentam contra estes direitos reconhecidos ao vizinho, ameaçando-os ou violando-os. Por isso, a medida necessária a evitar ou atenuar os efeitos dessa ameaça consiste em retirar os animais da casa onde vivem,

No entanto, provando-se que a concretização dessa medida pode prejudicar a saúde da esposa do requerido, pessoa doente que carece da companhia dos cães para melhorar a autoconfiança e a estabilidade emocional, é de conceder um prazo razoável, no caso de três meses, improrrogável, a contar do trânsito em julgado da decisão, para a concretização da retirada dos animais.

23-01-2023

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Susana Canêdo - Advogada
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