Eis a grande questão do nosso tempo: a inteligência artificial (IA) vai, eventualmente, substituir os advogados? E, se sim, será ela a versão 3.0 de um assistente jurídico, ou já estará a tomar notas de reuniões e a argumentar nas audiências? Em primeiro lugar, estou em condições de garantir algum conforto aos vossos espíritos: não, a IA não vai substituir os advogados, pelo menos tão cedo. Mas, se por acaso o fizer, gostaria de ser das primeiras figuras a chegar à inauguração do palácio da justiça em Chryse Planitia.

Vamos começar pelo óbvio: o papel do advogado, longe de ser uma função exclusiva de conhecimento jurídico, envolve uma complexa combinação de habilidades sociais, emocionais e até psicológicas. Um bom advogado não lê apenas a lei; ele interpreta, adapta-a às circunstâncias e aplica-a em contextos que são muitas vezes únicos. Já tentaram explicar a uma máquina o que significa “a dor da alma” de um cliente que perdeu tudo num processo de divórcio? A IA até pode entender o que é dor, mas o dilema humano, com toda a sua carga emocional, escapa-lhe por completo.

Claro, que se nos referirmos a tarefas como verificar contratos, realizar pesquisas legislativas ou participar na elaboração de peças jurídicas, a IA já desempenha essas tarefas a um nível interessante. Entre nós, quem nunca sonhou com uma máquina que resolva as questões mais simples e rotineiras do dia a dia, para que possamos, finalmente, nos concentrar em algo mais desafiador, como defender um cliente no tribunal, ou mesmo tomar um chá em paz (sem que o telefone toque com mais uma dúvida jurídica do tipo “Doutora, o meu ex marido atrasou-se 23 segundos a entregar as crianças, como devo processá-lo?”)

E, sim, a IA pode até atingir a capacidade de simulação de argumentos jurídicos, analisar dados e gerar relatórios. Aparentemente, ela sabe o que significa “acórdão” e até sabe de cor o número de artigos que formam um Código Civil. Mas, onde está o elemento fundamental, que é a arte da persuasão? Onde está a habilidade de construir uma narrativa convincente, de interpretar as emoções de um tribunal e, por fim, de dialogar com a complexidade da condição humana que cada caso envolve?

Aqui, a IA tropeça um pouco. Um bom advogado, à semelhança de um bom detetive, não se limita a seguir um script pré-definido. Ele observa, interpreta subtilezas, lê entre as linhas e, acima de tudo, consegue adaptar-se ao comportamento humano através da sua racionalidade abstrata. Será que a IA teria a destreza de, por exemplo, perceber que um cliente emocionalmente fragilizado precisa de um tipo de abordagem mais suave, ou se o juiz está a preparar uma armadilha legal durante a audiência? Não, infelizmente a IA ainda não aprendeu a fazer isso. O que ela faria, se fosse colocada nesse cenário? Apresentava a resposta legal mais lógica e provavelmente arruinaria qualquer tentativa de “humanizar” a situação.

Claro que sabemos que o mundo está a mudar. A tecnologia está a evoluir a uma velocidade espantosa, e a IA tem vindo a fazer uma revolução discreta em vários setores. No mundo jurídico, temos assistido a avanços como a automação de tarefas administrativas, o uso de algoritmos na adaptação de argumentações a cenários jurídicos e até mesmo o auxílio em negociações contratuais. Não obstante, isso não significa que a inteligência artificial vá ocupar o lugar dos advogados.

Em vez de substituir-nos, o mais provável é que a IA venha a tornar-se um auxiliar insubstituível, tal como um bom assistente jurídico, que nunca se cansa de pesquisar jurisprudência, mas jamais será capaz de substituir a arte de defender com convicção, diante um juiz que já está a dar sinais claros de impaciência.

Por último, admitimos que os advogados, tal como os médicos ou os chefes de cozinha, têm algo que a IA nunca poderá alcançar: a entrega da alma no seu trabalho. Não importa quantos algoritmos ou linhas de código possam ser programadas, a nossa capacidade de entender o ser humano, de negociar, de gerar empatia, criar cenários abstratos é simplesmente irreproduzível. Porque, no final das contas, ser advogado não é apenas aplicar a lei. É ser, também, um mediador entre as partes em conflito, é ser a voz dos desprotegidos, e, por vezes, até ser um pouco filósofo.

Portanto, não se preocupem, a IA não vai monopolizar os tribunais. Pelo menos não até que a IA desenvolva, ela própria, um sentido de humor sublime, a capacidade de sentir a pressão de uma audiência de manhã cedo ou mesmo acusada de ser a principal responsável por esgotar o stock de café nos tribunais.

Agora desculpem-me, mas vou ter de ficar por aqui, parece-me que a minha Bimby está a tentar devorar um código civil.

08-05-2025

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Susana Canêdo - Advogada
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