O desejo de deserdar um herdeiro legal é, porventura, um dos temas mais delicados e emocionalmente carregados no universo do direito sucessório. Em Portugal, onde a família é um pilar sagrado tanto na cultura como na lei, a ideia de afastar um filho, cônjuge ou ascendente da herança desafia instintos naturais e colide com a rigidez do ordenamento jurídico. Mas será mesmo possível? Sim, é. Contudo, como num romance de intriga, a trama exige condições específicas, uma boa dose de prova e um testamento bem redigido. Vamos explorar este terreno movediço com a bússola do Código Civil na mão, desvendando as situações em que a lei permite tal ato drástico.
A lei
A legislação portuguesa protege os chamados herdeiros legítimos: cônjuge, descendentes (filhos) e ascendentes (pais), garantindo-lhes uma quota parte indisponível da herança, conhecida como “legítima”, nos termos do artigo 2156.º do Código Civil. Esta proteção reflete a ideia de que certos laços de sangue ou matrimónio carregam um direito inalienável aos bens do falecido. No entanto, o legislador, ciente de que nem todas as relações familiares são um mar de rosas, previu exceções. O artigo 2166.º do Código Civil é a chave que abre esta porta estreita, elencando as situações em que a deserdação é juridicamente viável. Não basta um desentendimento trivial ou uma birra passageira; os motivos têm de ser graves, concretos e, acima de tudo, expressos em testamento.
Causas legais da deserdação
A primeira situação prevista no artigo 2166.º, n.º 1, alínea a), ocorre quando o herdeiro legitimário “tiver sido condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, os bens ou a honra do autor da sucessão, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adotante ou adotado“, desde que o crime implique uma pena superior a seis meses de prisão. Imagine um filho que, num acesso de fúria, agride fisicamente o pai, ou uma filha que, com dolo, destrói bens valiosos da mãe. Estes atos, se julgados e punidos com prisão significativa, podem justificar a exclusão da herança. A lei exige intenção – o dolo –, o que significa que um acidente ou uma imprudência não chegam para abrir este caminho.
Segue-se, na alínea b) do mesmo artigo, a condenação por “denúncia caluniosa ou falso testemunho” contra as mesmas pessoas referidas. Aqui, entramos no domínio da honra e da reputação. Se um herdeiro, por exemplo, acusar falsamente o progenitor de um crime em tribunal, sabendo da sua inocência, e for condenado por isso, a porta da deserdação escancara-se. É uma afronta que vai além do físico, ferindo a dignidade – e a lei não a tolera levianamente.
Por fim, a alínea c) prevê a recusa, sem justa causa, de prestar “os devidos alimentos” ao autor da sucessão ou ao seu cônjuge. Este dever de assistência, consagrado no artigo 1874.º do Código Civil, reflete uma obrigação moral e legal entre familiares próximos. Se um filho, por exemplo, abandona os pais em situação de necessidade, negando-lhes sustento sem razão válida, o testador pode invocar este incumprimento como motivo para o afastar da herança. É uma cláusula que apela à reciprocidade: quem não cuida, não herda.
Mas o processo não é automático. A deserdação exige que o testador declare expressamente a sua vontade num testamento, indicando a causa concreta, como estipula no artigo 2166.º. Sem esta formalidade, o desejo fica no limbo. Além disso, o herdeiro deserdado tem uma janela de recurso: nos termos do artigo 2167.º, pode, no prazo de dois anos após a abertura do testamento, contestar judicialmente a decisão, tentando provar que a causa invocada não existe. Este mecanismo protege contra abusos, mas também prolonga o drama familiar para os tribunais uma espécie de epílogo jurídico a conflitos já de si dolorosos.
Vale ainda mencionar a figura da indignidade sucessória (artigo 2034.º e seguintes), que, embora distinta, partilha o mesmo espírito punitivo. Aqui, a exclusão ocorre por força da lei, independentemente da vontade do testador, em casos como homicídio doloso ou tentativa contra o autor da sucessão. Contudo, a deserdação é um ato voluntário, uma escolha do testador que reflete uma rutura irreparável.
Deserdar um herdeiro legal em Portugal é possível, mas exige um enredo digno de tragédia grega: crimes graves, traições profundas ou abandono cruel. A lei, com a sua solenidade, equilibra a proteção dos laços familiares com a justiça perante atos intoleráveis. E, convenhamos, se um herdeiro chega ao ponto de merecer tal destino, talvez o verdadeiro castigo seja o peso da própria consciência ou, como diria em tom irónico uma estimada colega de profissão: “Deserdar um herdeiro? amiga, na minha terra, preferimos deixar-lhes uma dívida colossal e observar o caos que se segue. É muito mais divertido!”.
26/05/2025
 
				