Vivemos tempos maravilhosos. Antigamente, para saberem da nossa vida, os vizinhos tinham de encostar o ouvido à parede e fingir que regavam as plantas no quintal. Hoje, basta termos um smartphone e aceitar “todos os cookies”. Num instante, as grandes empresas de tecnologia sabem mais sobre nós do que a nossa própria mãe e, convenhamos, é assustador quando um algoritmo nos conhece melhor do que aquela senhora que nos criou.

O problema é que a privacidade digital, tal como o bom senso e as notas, está a desaparecer. Mas será que estamos preocupados com isso? Bom, se formos pelo artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, diríamos que sim. A Constituição garante-nos o direito à reserva da intimidade da vida privada. Ou seja, a lei protege-nos do facto de a nossa vida estar escancarada para toda a gente ver. O problema é que, enquanto o legislador estava ocupado a escrever isso, nós estávamos a fazer login com o Facebook em mais uma aplicação que promete dizer que tipo de pizza somos.

Depois temos o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), que veio tentar pôr alguma ordem na festa. O regulamento é claro ao referir que os nossos dados têm de ser tratados de forma “lícita, leal e transparente”. Ora, isto parece ótimo, mas, na prática, a única coisa transparente é a forma como as empresas conseguem descobrir tudo sobre nós. Aliás, se formos pelo histórico de pesquisas, já devem saber que andamos a tentar perder peso desde 2018 e que desistimos logo a seguir ao primeiro anúncio de gelado.

Outro princípio bonito do RGPD é o do consentimento. Em teoria, os nossos dados só podem ser recolhidos se dermos autorização. O problema é que a maioria de nós dá consentimento sem ler nada. Se nos perguntassem “quer vender a alma em troca de um desconto de 10% numa loja que nunca vai usar?”, 90% das pessoas clicavam em “aceitar” sem hesitar.

E depois temos os cookies. Ah, os cookies… São pequenos ficheiros que registam a nossa atividade online e fazem com que os anúncios saibam exatamente do que precisamos, antes mesmo de nós sabermos. Procuramos “melhores destinos de férias”? Minutos depois, já estamos a receber promoções de hotéis, voos e até fatos de banho – mesmo sem termos mencionado que o nosso antigo já parece um escorredor.

Mas calma! Há soluções. A lei não se esquece do “direito ao esquecimento”, que permite apagar os nossos dados de certas bases de dados. Infelizmente, o “esquecimento” funciona melhor para os nossos ex-namorados do que para a internet, porque algumas empresas guardam os nossos dados como se fossem recordações de um primeiro amor.

A verdade é que o direito à privacidade digital existe, mas protegê-lo exige mais do que confiar na legislação. É preciso alguma consciência da nossa parte. Ou seja, se não queremos que um site duvidoso fique com os nossos dados bancários, talvez seja boa ideia não inseri-los naquele formulário que promete revelar a nossa idade mental.

A solução passa por um maior empoderamento do cidadão, por uma fiscalização mais rigorosa e pela responsabilização das entidades que, ao lidar com nossos dados, os tratam como se fossem fichas de um jogo. No fundo, o que queremos é o direito de controlar as nossas informações pessoais, sem sermos tratados como mercadoria. No mundo digital, isso significa não ser apenas um produto a ser comprado e vendido, mas um sujeito com direitos, dignidade e privacidade.

05-05-2025

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Susana Canêdo - Advogada
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